Chama ardente do amor divino
“Recebei o Espírito Santo” (Jo 20, 22). Estas são as palavras do Cristo ressuscitado aos discípulos quando lhes mostra e apresenta a excelsa vitória de Deus, fruto incomparável da santa árvore da cruz e demonstração perfeita do amor misericordioso de Deus. No plano divino da salvação, o dom do Espírito Santo não vem colocado como apêndice ou acessório opcional, quase como se esse fosse um elemento a mais, é um presente sobre o presente, para que a alegria dos agraciados sobreabundasse com profusão. Na realidade, a doação do Espírito Santo realiza e completa o próprio mistério de Cristo, seu mistério pascal e confirma a inauguração da Nova Aliança no sangue redentor de vítima do Calvário.
No Evangelho de João, quando contemplamos a crucifixão e morte de Jesus, um particular é evidenciado pelo evangelista, mas que pode passar despercebido. No momento da expiração de Cristo sobre a cruz, João escreve: “Jesus […], disse: Tudo está consumado. Inclinou a cabeça e rendeu o espírito” (Jo 19, 30). A frase que indica que Jesus “rendeu o espírito”, em seu original grego se lê: parédoken tò pneûma. Tal afirmação, dentro da teologia de João, indica que Jesus, já na cruz, doou o Espírito Santo, como alma e força vital da sua Igreja, nascida da sua paixão salvadora, confirmando com a unção espiritual todo o novo povo de Deus, a partir de então, povo sacerdotal, real e profético.
A graça do Espírito Santo, no mistério da fé, se derrama sobre todos os que se colocam à sua disposição, isto é, a graça sublime do Espírito de Deus se faz acolher por todos os que se deixam atrair pelo Pai para dentro do mistério de Cristo em toda a sua amplitude. Assim sendo, este dom imenso pode realizar a graça santificante no interior daquele que crê e se abandona, gerando a experiência viva da misericórdia e união com o Pai e com o Filho.
São João da Cruz, falando da purificação que alma fiel vive no seu processo de união com Deus, declara que o Espírito é Chama viva de amor, que toma o ser daquele que a Ele se abre e o conforma ao mais intenso e puro amor, o amor divino, realizando na alma aquilo que ninguém mais, nem mesmo o indivíduo por si pode realizar. Em outras palavras, a graça santificante do Espírito Santo transforma o nosso interior, infunde em nós o amor de Deus, que não conhece limites nem obstáculos, mudando nosso próprio ser no ser de Cristo através do amor, retirando de nós o que pesa e o que impede a vida de frutificar e de vencer a morte.
Em todos os momento da nossa vida cotidiana podemos fazer a experiência da ação do Espírito Santo, mesmo em momentos simples e informais. É o Espírito que move nossa alma pela manhã através do desejo de Deus, que gera em nós a doce inquietação do espírito humano, aquela que apenas se satisfaz quando o encontro com o Criador acontece (cfr. Santo Agostinho, Confissões, I, 1, 1); é o Espírito que nos faz elevar os desejos ao que existe de mais belo, sublime e verdadeiro, gerando também a rejeição do que é contrário a estes bens; é o Espírito que nos ensina a amar com um amor forte e robusto, como quando abraçamos uma pessoa amada, com a sensação que há muito não o fazemos e que apenas naquele momento o faremos, assim também o somos ensinados a amar os irmãos, sem medo de se abandonar e sem reservas egoístas, pois o Espírito nos indica que para viver o amor só temos o dia de hoje.
Viver do Espírito se realiza no mais profundo do interior do homem, mas também se manifesta no mais simples e humilde agir deste mesmo homem, de forma humana e serena, sem maquiagens ou fingimentos, sem constrangimentos ou duplas intenções. Viver do Espírito é para os que desejam amar a Deus de todo o coração, com coragem, sem meios termos, e para os que querem ser amor para os demais, independentemente de quem sejam ou do que façam, apenas amar, ainda que este amor possa exprimir-se apenas na oração e na intercessão. Deus escuta sempre a voz dos que clamam a Ele, e deseja que esta voz tenha a tonalidade e a suavidade da voz do Espírito Santo.
“Oh chama de amor viva,
Que eternamente feres
Da minha alma o mais profundo ponto!
Já que não és esquiva,
Acaba já, se queres;
Rasga o tecido deste suave encontro.
Oh cativeiro suave!
Oh deliciosa chaga!
0h toque delicado! Oh mão querida,
Que à vida eterna sabe,
Toda a dívida paga!
Matando, a morte transforme em vida.
Oh lâmpadas de fogo,
Em cujos resplendores
As profundas cavernas do sentido,
Que esteva escuro e cego,
Com estranhos primores
Calor e luz dão junto ao seu querido!
Quão manso e amoroso
Acordas em meu seio,
Onde em segredo, solitário, moras;
E em teu aspirar gostoso,
De bem e glória cheio,
Quão delicadamente me enamoras”.
(São João da Cruz, Chama viva de amor)