… e como vai a sua biblioteca?
Nossos amigos são para nós preciosidades, possuidores de uma incalculável profundidade enquanto seres humanos e, mais ainda, donos de uma singularidade que os torna incomparáveis. Cada amigo tem uma história referente ao momento quando os conhecemos, o modo como atraiu nossa atenção e, até mesmo, os elementos de comunicação que permitiram a nossa aproximação, pois nenhuma amizade começa com um planejamento, mas sempre de forma espontânea e livre. De fato, a amizade é uma chave de liberdade. Quando temos um amigo, a sensação primeira que podemos experimentar é a da possibilidade. Parece redundante mas não é.
A proximidade do amigo, principalmente quando este se encontra fisicamente presente, garante a certeza de uma multiplicidade de possibilidades decorrente do resultado da composição desta unidade formada por ambos. Em outras palavras, quando estamos com um amigo, podemos, com facilidade, sentir-nos livres para sermos como quisermos, fazer o que agradar, falar da forma mais espontânea, pensar sem ser descriminado e silenciar por longos períodos sem provar aquela sensação que o “assunto está morrendo”.
Além disso, podemos sentir que a vida ganha um sentido a mais, que vai além dos propósitos e metas a serem atingidas nos anos que nos estão diante dos olhos, ou da avaliação daquilo que realizamos no tempo que já se nos desprendeu das mãos. A amizade sincera e real, concreta e bem vivida, nos faz experimentar algo que o próprio Deus deseja que nos seja lembrado constantemente: em virtude do amor de Deus em Cristo, somos imortais. Essa sublime realidade se faz muito presente na comunhão de vida com um amigo, pois podemos fazer experiência de nos transportarmos para um outro com tudo o que somos e temos, sem ilusões ou medos; sem interesses ou diminuições. Deste modo, o amigo nos faz ir além, nos faz sair de nós de uma forma que nos pode completar, pois ao sairmos de nós mesmos, somos também preenchidos por aquele que nos acolhe, acolhendo-o em nós. “Que coisa tão doce como ter um com quem falar de todo tão livremente como consigo mesmo? Seria porventura tão grande o fruto das prosperidades, se não tivéssemos quem delas se alegrasse tanto quanto nós mesmos? E se poderiam sofrer as adversidades sem alguém que as sentisse ainda mais que aqueles mesmos que as experimentam?” (Cícero, Diálogo sobre a amizade, VI). Valendo-se da realidade concreta e bem clara da amizade, usemo-la como analogia para uma outra classe de amigos: os livros.
A inteligência, assim como qualquer outra parte do nosso ser, precisa ser alimentada e engrandecida. Uma das formas mais excelentes de produzir isto é a leitura. Obviamente existem muitos tipos de leitura, muitas formas de aprendizado e inúmeras fórmulas mágicas para tornar qualquer pessoa um expert em qualquer coisa que queira. No entanto, devemos observar que os livros, ontem como hoje, assumem um papel (!) de grande importância neste processo tipicamente humano.
Os livros devem ser contados como uma riqueza por alguém possuída, pois são bens de extrema utilidade, que podem acompanhar as famílias por gerações, e não somente. Neste sentido, não seria um equívoco dizer que os livros constituem um verdadeiro patrimônio sólido e valioso. Uma biblioteca bem constituída, com livros de qualidade – podendo-se admitir alguns que não sejam em si bons, para que sejam também estudados e averiguados a seu tempo – é comparável ao fundamento rochoso sobre o qual se pode construir uma casa que poderá durar para sempre. “Livros. Não os compres sem te aconselhares com pessoas cristãs, doutas e discretas. – Poderias comprar uma coisa inútil ou prejudicial. Quantas vezes julgam levar debaixo do braço um livro… e levam um montão de lixo!” (São Josemaría Escrivá, Caminho, 339) e, por isso, assim como os amigos, os livros devem ser bem escolhidos.
Quando nos colocamos a ler, fazemos a experiência de sair de nós mesmos, pois abrimo-nos para acolher uma outra pessoa que nos falará à partir do nosso interior. Em verdade, todo livros traz consigo o pensamento e a intimidade de outra pessoa, muito provavelmente alguém com a qual nunca nos encontramos ou tivemos a oportunidade de conviver, mas que ali está, presente através da tinta e do papel, através das palavras por ela escolhidas dentre tantas outras que poderia ter usado e não usou, pois o que tinha a dizer necessitava ser dito direito.
Através dos livros aprendemos sobre o mundo e a vida com professores que conhecemos ou não; temos aulas sobre o que nos interessa ou sobre assuntos aborrecidos, mas importantes; visitamos lugares que nossos pés nunca pisaram ou somos apresentados a pessoas que já partiram deste mundo, mas que deixaram marcas indeléveis na história; somos conduzidos em nossa caminhada com Deus por mestres de espiritualidade ou doutores da fé que, com segurança e paternidade, nos indicam a estrada segura, mesmo estando distantes no espaço ou no tempo.
Uma boa biblioteca não é medida pela quantidade de livros, assim como um bom amigo não é medido pela quantidade de amigos que ele tem ou diz ter – e muito menos pela quantidade de “seguidores” em uma rede social. Uma boa biblioteca é aquela bem cuidada e sempre visitada. Assim como entre amigos, existem aqueles mais próximos, os mais falantes e os mais quietos, os mais presentes e os que só dão sinal de vida quando provocados, os mais interessantes e os que tem mais a receber do que a dar. Em todos os casos, os amigos são sempre parte do coração. De forma semelhante é nossa relação com os livros. Eles são parte de nossa vida, são companheiros de viagem e de caminho, ajudantes nos deveres e consolo nas dificuldades, além de sólidos depósitos do bem. “Na leitura – escreves-me – preparo o depósito de combustível. Parece-me um montão inerte, mas é dali que muitas vezes a minha memória tira espontaneamente material, que enche de vida a minha oração e inflama a minha ação de graças depois de comungar” (São Josemaría Escrivá, Caminho, 117).
Por fim, vale ressaltar que a leitura é um dom, precioso e discreto, que nos coloca em contato com nossa alma e com a alma de outros. Assim sendo, animemo-nos a cultivar e a fazer progredir essa virtude, pois aquele modo de viver onde se diz “eu não gosto de ler… Eu tenho preguiça de ler”, nunca fez bem a ninguém.