Em busca da verdade que liberta

Um dos clássicos de literatura mais célebres do escrito Charles Dickens foi Um conto de Natal, publicado em 1843 que retrata uma inesperada experiência natalina por parte de um homem avarento e avesso às festividades do Natal. Em determinado momento da trama, o protagonista Ebenezer Scrooge recebe a visita de três espíritos que lhe indicam as particularidades das épocas da sua vida vividas na chave de leitura do Natal. O segundo espírito a visita-lo, ao final do diálogo entre os dois, lhe revela duas crianças, um menino e uma menina, a quem chama, respectivamente, Ignorância e Miséria, alertando Scrooge a tomar cuidado com estas duas realidades presentes ao redor de qualquer pessoa. E diz: “Cuidado com os dois, mas principalmente com o menino [‘Ignorância’], pois em sua testa estará sempre escrita a palavra Perdição, a menos que alguém resolva apaga-la” (Charles Dickens, Um conto de Natal, cap. III). Essas palavras denotam uma grande tentação à qual o homem está sempre sujeito enquanto dura sua vida na terra, ou seja, o risco de viver na ignorância e não tomar consciência que isto destrói a própria existência humana com a sua dignidade, deixando-o à mercê dos espertos, aqueles “filhos das trevas” sempre mais astutos que os filhos da luz (cfr. Lc 16, 8).
A modernidade foi marcada pela busca – quase frenética – pela liberdade de expressão e pela custódia de direitos, mais ou menos autênticos, tudo tendo por base o desejo de ser independente e tornar o homem o grande artífice da história, mesmo que para isso fosse necessário fazer desaparecer a presença e a ação de Deus, assim como proclamava Nietzsche e outros pensadores. Nossa época, já marcada pela pós modernidade, vive um estado de perda e dissolução intelectual, que tem aprisionado os homens fora de si mesmos, impedindo-os de ter acesso ao seu próprio interior e modelando seu exterior em conformidade com ideias pré-concebidas que dispensam o uso da reflexão pessoal pela sua grande capacidade de imposição através da alienação da realidade objetiva. Em nossos dias os intelectuais, que deveriam contribuir com a reflexão sobre a realidade circunstante, são tidos por esnobes e desocupados, juízo este que desqualifica este serviço essencial que tem promovido o bem da civilização humana desde os primórdios. Existe uma tendência para a condenação de tudo o que é teórico e uma supervalorização de tudo o que é prático e capaz de procurar retorno financeiro ou notoriedade. Um tal quadro não pode que ser concluído com a triste constatação de um processo de transformação da sociedade de um grupo pensante e reflexivo para um amontoado de pessoas sem objetivo claro de vida individual e comum, culminando no desaparecimento a riqueza do conhecimento e da busca pela verdade objetiva em face a uma desenfreada “ditadura do relativismo”, como a chamou tantas vezes o Cardeal Ratzinger.
Sim, de fato estas linhas não se destinam à uma reflexão de cunho majoritariamente espiritual, mas sim à uma reflexão sobre a necessidade da reflexão. Todos os dias nós, discípulos de Jesus, nos confrontamos com um mundo envolvido nas trevas do erro e da mentira, onde fomos colocados pelo nosso Senhor para sermos luz, que ilumina justamente por ser colocada no alto: “Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre uma montanha nem se acende uma luz para colocá-la debaixo do alqueire, mas sim para colocá-la sobre o candeeiro, a fim de que brilhe a todos os que estão em casa. Assim, brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus” (Mt 5, 14-16). Desta forma, não nos podemos nos contentar em guardar apenas o mínimo da sabedoria de Deus em nossos corações, e sim buscarmos conhecer sempre mais o Senhor e a sua graça, através dos meios que nos estiverem à disposição. Um destes meios valiosos é o estudo da Sagrada Escritura e da Doutrina da Santa Igreja, que ilumina nossas escuridões interiores, permitindo-nos iluminar aqueles a quem o Senhor nos envia me seu nome. Foi o próprio Jesus quem nos afirmou: “A verdade vos libertará” (Jo 8, 32). Estar da parte da verdade implica também conhece-la e anuncia-la.
Neste sentido, a ignorância é algo que não pode ser uma postura de escolha da parte dos cristãos, pois ela nada mais é que uma recusa ao conhecimento de Cristo, a Verdade que pode nos fazer realmente livres. Assim como um católico sem oração é um soldado que vai à guerra sem armas (cfr. São Josemaria Escrivá, Forja, 453), também um cristão sem o conhecimento se torna apenas mais um fantoche nas mãos dos espertos deste mundo e, de consequência, deixa de ser luz na vida dos demais.
Santo Tomás de Aquino, um dos maiores doutores da história da Igreja, homem de intensa espiritualidade e de atividade intelectual ímpar, descreve a busca da sabedoria como aprofundamento na verdade através do estudo da realidade cunhada em Deus, a qual nos permite colher a bondade divina em cada elemento desta verdade (cfr. STh I, q. 1, art. 5-6). Mas é também ele mesmo quem afirma que não basta o simples estudo para tornar alguém sábio, nem incutir-lhe o desejo de amar a Deus e de conhecer a Verdade eterna, para tanto é necessária uma vida de oração profunda, de um desejo de realizar o bem e de buscar o conhecimento, não por si mesmo, mas como meio de compreender o mistério divino revelado na criação e na vida sublime dos homens, recebedores da sua misericórdia (cfr. Santo Tomás, De modo studendi).
Por fim, vale dizer que a busca do conhecimento é um dever do cristão, não pela arrogância derivada da pretensão de ser superior a alguém, mas pela caridade de se colocar a serviço da Verdade que é capaz de iluminar a vida e fazer enxergar a beleza de Deus em tudo o que é bom e justo. De tal forma, a realidade que nos rodeia neste momento conturbado da história poderá readquirir seu significado mais profundo e preparar-se para o encontro sublime com o Criador de todas as coisas.
“Mas, ao lado de vós está a Sabedoria que conhece vossas obras; ela estava presente quando fizestes o mundo, ela sabe o que vos é agradável, e o que se conforma às vossas ordens. Fazei-a, pois, descer de vosso santo céu, e enviai-a do trono de vossa glória, para que, junto de mim, tome parte em meus trabalhos, e para que eu saiba o que vos agrada. Com efeito, ela sabe e conhece todas as coisas; prudentemente guiará meus passos, e me protegerá no brilho de sua glória. Assim, minhas obras vos serão agradáveis”
(Sb 9, 9-12).