Livres na santa vontade de Deus
O mundo atravessa um momento único de assombro e de comoção. As estruturas sociais, assim como as instituições políticas se encontram em grande turbulência e difícil harmonia. A população que permeia as cidades e vilarejos do globo se sente pressionada contra a parede pela falta de direcionamentos concisos e claros, sem sombras de segundas intenções. Tudo isso acontece hoje – e já faz um tempo –, devido a um vírus que estremeceu os fundamentos da sociedade altamente tecnológica e autoconfiante, que é a nossa.
Todos os dias são divulgados dados e números expostos em gráficos de muitas cores, todos apontando para a mesma realidade combatida. Todos os dias, famílias e grupos de amigos se detém por largos espaços de tempo a falar sobre fatos ou mitos ouvidos de outras pessoas, coletados através de programas de televisão ou de vídeos enviados por meio de aplicativos de celular, tudo feito sob a bandeira da informação. Todos os dias são divulgadas novas orientações por parte dos governantes e seus auxiliares, conduzindo cada pessoa a uma certa forma de vida, fundamentando tal atitude na manifesta intenção de proteger e guardar as vidas dos que têm suas vidas reformuladas.
De fato, todos os dias, muitos homens e mulheres comparecem diante de nossa inteligência para nos dizer o que fazer, o que conversar e como passar a agir nas relações interpessoais. A dúvida acerca da moralidade de tudo isso, da sua real aplicabilidade e, consequentemente, da sua autêntica bondade, é algo que não podemos pretender responder aqui. No entanto, o simples fato de que estas perguntas são feitas é, por si mesmo, um sinal positivo de sensibilidade real, isto é, de capacidade de sentir e perceber o mundo, não apenas dentro dos limites da própria casa ou vizinhança, mas com uma mente tipicamente humana, que sempre se transcende a si mesma. Obviamente, aqui não se está procurando fazer uma apologia ao autoreferencialismo, pois este é uma ilusão de poder que submete a inteligência do homem ao que há de menor no seu campo de visão, isto é, ele mesmo.
Contemporaneamente, dentro de toda essa situação atual, uma pergunta pode e deve ser feita com firmeza e retidão de intenção: qual é a vontade de Deus? Porém, aqui não nos queremos questionar acerca do desígnio específico de Deus com a situação da pandemia que nos assola. É difícil poder dizer que foi o Senhor mesmo a manda-la, assim como também é árdua de ser cumprida a pretensão de identificar o plano divino com algo do gênero. No entanto, sabemos que o que quer que aconteça, sempre e de toda forma, Deus em sua sabedoria e providência, sempre dispõe os acontecimentos da história, mesmo aqueles que mais aparentam a falta de sentido, tirando de tudo, mesmo dos males, um bem grandioso e destinado a nossa salvação.
O que nos propomos aqui sondar é a nossa atenção para com o querer divino nestes tempos, onde são tantas e tão impositivas as vozes que nos comandam a todo momento. Em outras palavras, mesmo diante da situação hodierna, temos guardado em nosso interior a liberdade dos filhos de Deus? Recordemos que foi para a plena e autêntica liberdade que fomos libertos pela graça de Cristo (cfr. Gl 5, 1), e essa realidade não nos pode ser tirada por ninguém, exceto nós mesmos, pois é um dom conquistado pelo próprio Senhor, a duras penas e sob o preço caríssimo do seu sangue derramado.
Vale a pena lembrar que esta liberdade da qual somos herdeiros em Cristo, e da qual gozamos na sua paz, não significa, em primeira instância, uma liberdade física, ainda que esta seja sempre imprescindível e digna de toda pessoa humana. A liberdade que recebemos é interior, cravada na alma pela glória de Cristo manifestada no Calvário, e nela encrustada pela verdade que liberta (cfr. Jo 8, 32). Isso significa que, os governos – com boa ou má intenção, não nos cabe aqui julgar – podem confinar os filhos de Deus em suas casas com o fim de proteger a sociedade e cada cidadão de um risco à saúde, mas nunca poderão conter a liberdade intrínseca semeada pelo Espírito Santo nas almas dos fiéis.
Para usar outros termos, o confinamento pode impedir os cristãos de saírem de casa e se locomoverem conforme sua vontade, mas não pode impedir que estes deem testemunho de Cristo às outras pessoas, nem de denunciar o mal que se esgueira em cada situação que vivemos, mesmo numa pandemia; o distanciamento social pode impor um metro e meio de limite entre um irmão e outro, mas nunca conseguirá esfriar o amor daqueles que se reconhecem amados por Deus e capazes de amar com profundidade, não importando os limites de espaço para isso; a obrigatoriedade das máscaras de proteção podem até esconder o sorriso dos que estão repletos da alegria do Espírito, mas não podem conter o olhar, de onde irradia a verdadeira alegria, aquela que permeia a alma, pois se as janelas estão abertas, a luz brilhará; e, por fim, a triste realidade da morte de tantos irmãos e irmãs pode trazer tristeza aos corações dos filhos de Deus, afinal a perda de alguém que se ama nunca passa despercebida, mas nunca poderá vencer a esperança que habita seus corações, pois para os que creem em Cristo, a vida não termina, ela é transformada pela força redentora da Páscoa, dando ainda mais coragem para enfrentar os desafios de forma impávida e serena.
Portanto, qual é a vontade de Deus? O que ele pede hoje de cada um? Importa-nos conhecer o seu querer, pois foi essa santa vontade que nos criou, que nos redimiu e que mostrou todo o seu amor. Será amando a santa vontade de Deus que saberemos atravessar o que quer que a vida nos reserve.
“Nada te perturbe, nada te espante, tudo passa,
Deus nunca muda, a paciência tudo alcança.
Quem a Deus tem, nada lhe falta. Só Deus basta!”
(Santa Teresa de Ávila)