Penitência: sim! Mas e o sentido?
O tempo quaresmal é uma extraordinária manifestação da misericórdia e providência divinas. De fato, a celebração da Semana Santa, com seu ápice no Sagrado Tríduo da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor Jesus, deve ser vivida com toda a profundidade possível, pois nestes dias santos celebramos de forma vívida e atual os mistérios da nossa Redenção. Neste sentido, saber que podemos dedicar-nos, todos juntos, durante um tempo propício, à nossa preparação interior para estes dias é, sem dúvida, um grande refrigério. Se assim não fosse, talvez nos manteríamos focados em nossas atividades de trabalho, estudo, crescimento pessoal e profissional etc., e terminaríamos chegando às festas pascais com a mesma disposição interior que um atrasado para o ENEM, isto é, afoitos pela consciência da importância do que vai acontecer, porém com pouca ou nenhuma sintonia com o espírito do que se vai celebrar.
Uma das práticas mais comuns deste tempo da Quaresma, desde o seu início nos primeiros séculos do cristianismo, é a penitência, a qual se destina a privar o corpo de um prazer ou comodidade com o fim de submeter a vontade ao domínio da reta razão iluminada pelo espírito, proporcionando a quem a pratica uma maior serenidade e firmeza diante das tentações e, consequentemente, um mais expressivo progresso na vida espiritual e na busca da perfeição através da conversão.
As formas de penitência são muitas: o jejum, nos permite renunciar à alimentação normal para impor limites à nossa vontade, além de nos convidar à partilha do que possuímos com aqueles que menos têm; a abstinência gera um benefício ascético semelhante ao jejum, com a particularidade de ser mais abrangente, pois não apenas se pode renunciar a alimentos, mas também a qualquer coisa que gere prazer ou comodidade, como ouvir música, acessar as redes sociais etc.; a disciplina, que mira mais especificamente à comodidade e ao conforto, nos ajuda a vencermos o anseio egoístico(!) pelo melhor, fazendo-nos buscar submeter-nos a pequenos desconfortos, como uma peça de roupa que não seja tão agradável à pele, uma cadeira que obrigue mais à postura ou com falta de um assento acolchoado, ou mesmo a falta de açúcar ou adoçante naquele café amargo tomado pela manhã. Todas essas práticas nos ajudam a viver com coragem e determinação a mortificação, que nada mais é do que a busca da realização daquilo que já o Apóstolo nos estimulava a perseguir: “Portanto, vós também considerai-vos mortos ao pecado, porém vivos para Deus, em Cristo Jesus. Não reine, pois, o pecado em vosso corpo mortal, de modo que obedeçais aos seus apetites” (Rm 6, 11-12).
No entanto, uma pergunta é essencial: qual é o sentido da minha mortificação? Concordaria com você caso dissesse que esta pergunta tem mais razão de ser se fosse colocada no início da reflexão. Porém, a pergunta feita acima possui uma conotação volátil, pois o que se pretende aqui interrogar é o sentido pessoal e íntimo que cada cristão deve ter diante da prática da penitência. De nada serve realizar grandes mortificações se elas são destinadas apenas a inflar o ego de quem as pratica; de nada serve mortificar o corpo se a alma não acompanha esta ação, e isto acontece quando nos preocupamos demasiadamente em cumprir o “acordo” feito com Deus e sermos “fiéis” até o fim à penitência escolhida, mas não a acompanhamos com a oração sincera e amorosa, nem com a caridade fraterna que imita a vida de Cristo sobre esta terra.
“Penitência é o cumprimento exato do horário que te fixaste, mesmo que o corpo resista ou a mente pretenda evadir-se com sonhos quiméricos. Penitência é levantares-te pontualmente. É também, não deixar para mais tarde, sem motivo justificado, essa tarefa que te é mais difícil ou custosa. A penitência está em saber compaginar as tuas obrigações relativas a Deus, aos outros e a ti próprio, exigindo-te, de modo que consigas encontrar o tempo necessário para cada coisa. És penitente quando te submetes amorosamente ao teu plano de oração, apesar de estares cansado, sem vontade ou frio. Penitência é tratar sempre os outros com a maior caridade, começando pelos teus. É atender com a maior delicadeza os que sofrem, os doentes e os que padecem. É responder com paciência aos maçadores e inoportunos. É interromper ou modificar os nossos programas, quando as circunstâncias – sobretudo os interesses bons e justos dos outros – assim o requerem. A penitência consiste em suportar com bom humor as mil pequenas contrariedades do dia; em não abandonar o trabalho, mesmo que no momento te tenha passado o entusiasmo com que o começaste; em comer com agradecimento o que nos servem, sem caprichos importunos” (São Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, 138).
Nossa penitência será agradável a Deus se ela tiver uma razão e, desde que, essa razão seja tão grande a ponto de abarcar o mundo na caridade e na oblação orante, pois somente assim nosso pequeno sacrifício será achado digno se unir-se ao supremo sacrifício do Filho de Deus e tornar-se benção de redenção sobre toda a humanidade. Lembremo-nos que a Deus agradam os pobres, não os mesquinhos.