Recriados pela Palavra
“Por meio do Verbo foste feito, mas é necessário que por meio do Verbo sejas refeito” (Santo Agostinho, Comentário sobre o Evangelho de São João, I, 2).
Estas palavras do grande bispo de Hipona, delineiam com clareza o caminho a ser seguido por aquele que deseja pertencer a Deus de todo o coração, servi-lo com a vida e ser unido a ele na eternidade. Tal realização plena acontece apenas através da ação poderosa de Deus que pode criar e recriar conforme sua livre vontade. Para ele, de fato, nada é impossível (cfr. Lc 1, 37). Desta forma, ser unido a Deus infinito requer do homem limitado uma adesão total com o seu ser e o seu agir, de forma a alargar a sua existência para acolher a manifestação poderosa de Deus, que modifica a realidade que toca e dá vida ao que dela estiver privado.
Contudo, devemos dizer, uma condição se faz mister para que o homem acolha a ação de Deus em si: a abertura à Palavra divina. Isso é imprescindível, pois o Senhor escolheu operar a sua obra de criação e de renovação justamente através da Palavra. Foi pela palavra que o Criador, no princípio, criou todas as coisas, dando existência ao que não poderia existir sem sua vontade, criando tudo com bondade e perfeição, fazendo confluir na obra criada a perfeição e a bondade das quais ele é a fonte (cfr. Gn 1, 1-31), tudo sendo realizado por Deus mediante a sua palavra: “E Deus disse…”.
Eis que vemos que o dizer de Deus cria, gera, faz ser o que antes não era. Mais adiante na história, vemos a plenitude deste dizer de Deus, que agora não mais cria do nada, mas recria à partir do bem já criado mas, principalmente, por meio da sua Palavra, não mais dita, e sim encarnada. A encarnação de Jesus Cristo no seio de Maria de Nazaré é o dizer mais sublime de Deus; é sua manifestação mais perfeita. Na encarnação o Verbo eterno, Filho Unigênito e co-eterno de Deus Pai, assume em si a natureza humana enfraquecida pelo pecado, destruída pela maldade dos homens ao longo dos séculos. Esta natureza assumida, em um primeiro momento, não está destinada à conservação e à exaltação mundana, mas à ignomínia gerada pelo ódio humano e à cruz como última palavra do homem à bondade e amor divinos. A cruz é um ‘não’ pronunciado pela humanidade pecadora e envolvida em trevas ao amor de Deus. Mas a cruz é também um ‘Sim’, o sim definitivo de Deus no Filho que “era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. Estava no mundo e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam. Mas a todos aqueles que o receberam, aos que crêem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1, 9-12); é o lançar-se do pai misericordioso ao pescoço do filho pródigo depois da humilhação a que o pecado leva, para que ele não mais fuja (cfr. Lc 15, 11-32). A cruz é também o grande ‘Sim’ de Cristo ao Pai, na obediência e no amor insondáveis, que não retém nada de si para si mesmo, mas que tudo entrega ao Pai por amor, e assim entregue, o Pai pode entregar o Filho para que, pela sua abnegação e humilhação nas mãos dos homens, sejam salvos os servos pela morte do Filho (cfr. Precônio Pascal). Deste modo, a criação de Deus realizada através da sua Palavra, lançada pelo mal no abismo do pecado e da morte, é recriada em Cristo, Verbo divino encarnado, que vence o mal e restitui à criação não seu antigo esplendor, mas um novo, aquele do Ressuscitado, do Cristo Senhor do Universo, vencedor que ainda vence (cfr. Ap 1, 17-18) e que faz novas todas as coisas (cfr. Ap 21, 5).
Esta Palavra divina que tudo pode operar se manifesta poderosamente na Sagrada Escritura, onde o Verbo fala do Pai através da inspiração do Espírito Santo. O mesmo Deus Criador e Redentor nos comunica sua vontade quando meditamos e acolhemos em nós a sua Palavra, dando a ela a abertura do coração e deixando que sua presença recrie o nosso ser, não como um refazer algo novamente porque se quebrou, mas um recriar espiritual que modela a existência inteira em Cristo e que se reflete no agir de cada dia. “Ao abrires o Santo Evangelho pensa que não só tens de saber o que ali se narra – obras e ditos de Cristo – mas também tens de vivê-lo. Tudo, cada ponto relatado, se recolheu, pormenor a pormenor, para que o encarnes nas circunstâncias concretas da tua existência. Nosso Senhor chamou os católicos para o seguirem de perto e, nesse Texto Santo, encontras a Vida de Jesus; mas, além disso, deves encontrar a tua própria vida. Aprenderás a perguntar tu também, como o Apóstolo, cheio de amor: ‘Senhor, que queres que eu faça?’… – A Vontade de Deus! – ouvirás na tua alma de modo terminante. Então, pega no Evangelho diariamente, e lê-o e vive-o como norma concreta. Assim procederam os santos” (São Josemaria Escrivá, Forja, 754).
Assim sendo, se desejamos que nosso coração e nossa vida sejam transformados, devemos permitir que a Palavra de Deus recrie em nós a vida divina e a amizade com o Senhor. Somente vivendo da Palavra saberemos qual é a meta do nossa existência e o desejo mais profundo do coração de Deus para nós.