Verdadeiro amigo da Cruz
O Mistério Pascal de Jesus Cristo se desenvolve em três momentos únicos e irrepetíveis: paixão, morte e ressurreição. Estes eventos constituem um único evento salvífico, iniciado com a encarnação do Verbo no seio de Maria Santíssima e consumado no seio da terra, identificado com o sepulcro onde o corpo morto de Cristo foi depositado. O evento da salvação acontece por disposição divina eterna, que proclama a última palavra sobre a história humana, levando-a ao seu cumprimento final, isto é, iniciando o tempo escatológico onde Cristo é a razão substancial do homem redimido e meta absoluta da história.
Diante de um tal mistério, desta grande realidade que transcende nossas categorias e enche a existência humana de uma nova luz, nossa adesão deve seguir a mesma lógica da adesão de Cristo. Isto significa que, assim como o Filho de Deus aderiu ao desejo de salvação do Pai, atuando-o no mundo em favor dos homens, com o fim de que todos fossem renovados e preenchidos pela graça do Espirito Santo, também nós devemos assumir para nossa vida os sentimentos do Filho, de forma a tornarmo-nos também nós filhos no Filho pela sua cruz.
Um particular contido nas visões de Santa Catarina Emerich ilustra bem aquilo que acima se procurou afirmar. Ela escreve que o Senhor Jesus, no momento em que lhe dão a cruz para carregar ao Calvário, se ajoelha, abraça a cruz e a beija. Independentemente da historicidade ou não desta cena, seu significado é verídico a todos os efeitos. Jesus não poderia ver a cruz como simples instrumento de suplício, nem como um fardo pesado a ser carregado. De fato, ele mesmo havia comandado aos seus discípulos de carregarem, cada um, sua cruz (cfr. Mt 16, 24).
A cruz de Jesus se torna – graças ao Crucificado que nela oferece seu sacrifício – um altar, um verdadeiro altar sacrifical e expiatório, o qual toma o lugar dos mais altos montes espalhados pelo mundo, pois no momento da oferta de Cristo, não existe ponto mais próximo do céu que o Calvário. Este imenso e incomensurável sacrifício, que toma sobre si todos os sacrifícios que a humanidade já havia realizado e ainda realizaria para torna-los parte do madeiro, torna realidade a libertação, procurada pelo primeiro homem sob forma de uma pseudo emancipação.
Cristo ama a cruz, não pela dor que ela inflige, mas pela redenção que nela se realiza; ama a cruz, não pelo peso do madeiro, mas pela glória divina que nela se manifesta em grande esplendor; ama a cruz, não pelo pecado do mundo que nela se compendia, mas pela misericórdia divina que dela escorre em forma de sangue.
O mesmo amor que Cristo tem pela cruz, qual seu autêntico amigo, somos também nós chamados a possuir. O convite que nos é dirigido se destina a fazer do nós amigos da cruz de Cristo, autênticos cristãos, que não acompanham o Senhor apenas quando ele recebe gritos de louvores, mas sim que estão dispostos a sofrer as injúrias dos homens que não aceitam um Deus que ame mais do que condene, nem que seja mais pronto a perdoar que a vingar o mal cometido, ou mesmo que desejem uma divindade vazia e sem significado, muda e cega, incapaz de agir ou de realizar o que quer que seja, de forma que a vida seja vivida no máximo do prazer, chegando o seu fim sem preocupações de dever ou pensamentos sobre as consequências de tal existência.
Acerca dos inimigos da cruz, São Paulo já advertia: “Irmãos, sede meus imitadores, e olhai atentamente para os que vivem segundo o exemplo que nós vos damos. Porque há muitos por aí, de quem repetidas vezes vos tenho falado e agora o digo chorando, que se portam como inimigos da cruz de Cristo, e cujo destino é a perdição, cujo deus é o ventre, para quem a própria ignomínia é causa de envaidecimento, e só têm prazer no que é terreno” (Fil 3,17-19). Não é a isso que o Senhor nos chamou, nem mesmo é este o futuro que para nós desejou e operou quando nos abriu o caminho da felicidade eterna pela sua cruz redentora.
Prosseguindo, o Apóstolo assevera: “Nós, porém, somos cidadãos dos céus. É de lá que ansiosamente esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo” (Fil 3,20). Não se pode desconectar a cruz do céu, nem desfazer o caminho de “assunção” desejado por Deus para nós que cremos. Em verdade, uma ponta da cruz toca nossa terra, carente de salvação, anelante de vida e transformação, enquanto a outra ponta toca o céu de Deus, onde ele tudo é em todos, e para onde toda a humanidade, no Cristo crucificado, é levada.
Ser amigo da cruz de Cristo significa, portanto, ser um outro Cristo no mundo, trazendo no coração e na alma o mesmo apreço do Senhor pela cruz que redime, unindo nossas cruzes à sua, e deixando que nossa simples existência seja preenchida pela infinita grandeza de Deus.
“Porém, não basta sofrer, o mal e o mundo também têm seus mártires. Nós devemos sofrer e carregar nossa cruz nas pegadas de Cristo: ‘Siga-me’, que significa que nós devemos sofrer carregando-a como Jesus” (S. Luis Maria Gignon de Montfort, Carta aos amigos da Cruz, 41).